TECNOLOGIAS NÃO-INVASIVAS DE CUIDADOS DE ENFERMAGEM COMO CAMINHO PARA A DESMEDICALIZAÇÃO DO PARTO

Revista Enfermagem Atual - Desmedicalização

 
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Introdução (coordenadora Jane Márcia):

 

Bem, pensando em introduzir o tema eu fiz um apanhado histórico sobre a desmedicalização em si. Quero iniciar dizendo que no Rio de Janeiro o movimento de humanização do parto e nascimento tomou impulso, no meu modo de ver, a partir de 1994 quando foi inaugurada a Maternidade Leila Diniz.

Eu tenho pesquisado e tenho visto que desde o início este movimento social fez severas críticas ao uso abusivo de tecnologias duras e intervenções do processo biológico do parto.

Essas tecnologias duras são características marcantes do modelo medicalizado de assistência obstétrica implantadas no Brasil, desde o meado do século XX, até então só estou fazendo um resgate histórico.

Essa tecnologia dura, esse modelo medicalizado que foi implantado é centrado no saber e no poder do profissional de Saúde e não na mulher, e não no protagonismo da mulher e nos direitos da mulher.

Bom, esse movimento, e aí vem a minha participação como pesquisadora, eu tenho notado que, desde o início, contou com a participação das enfermeiras. E isso contribuiu para que muitas dessas enfermeiras repensassem e transformassem sua prática. As enfermeiras obstétricas, depois desse movimento, formadas em escolas de enfermagem que tinham a obstetrícia medicalizada passaram a acreditar que a gravidez não é doença e na força do corpo feminino. Enfim, passaram a acreditar que é a mulher quem faz o parto, e não o profissional de saúde. Essa mudança de mentalidade profissional não quer dizer que ela tenha se mudado como mulher, mas houve uma mudança de mentalidade profissional.

Essa mudança retrata a possibilidade da mulher ter o início, meio e fim do próprio processo de gestar e de parir. E é isso que sustenta o significado de desmedicalização. Então, eu associo, a todo o momento, a desmedicalização ao movimento de humanização e à transformação de uma prática profissional por uma mudança de mentalidade profissional de algumas enfermeiras, as obstétricas dentro do setor da enfermagem geral.

As enfermeiras que incorporaram esse significado de desmedicalização mudaram a sua prática e começaram a fazer a diferença. Aí se estabeleceu o ciclo, a desmedicalização foi o caminho para a reconfiguração da prática da enfermeira que será mantida e se sustentará a própria desmedicalização. A desmedicalização mudou a minha pratica e eu mantenho a desmedicalização por quê? Por causa da minha prática mudada, vamos dizer assim, ou por causa das especificidades da minha prática diante dos princípios trazidos pelo movimento social de humanização, que foram canalizados pela desmedicalização.

 

Jane Márcia: Atualmente, na cidade do Rio de Janeiro, esse saber fazer da enfermeira especialista em enfermagem obstétrica acontece em três espaços do campo obstétrico: na casa de parto, no domicílio ou no hospital maternidade e aí começamos a discussão da nossa mesa redonda. Leila, como é que as enfermeiras trabalham na Casa de Parto, como é a prática e onde está a especificidade da enfermagem na obstetrícia humanizada, desmedicalizada.

 

Leila: Bom dia, eu acho que para entender hoje o que as enfermeiras obstétricas da Casa de Parto, de que maneira elas atuam no seu cuidado, a gente precisa repensar de que forma essas enfermeiras chegaram até a casa de parto. Na totalidade são enfermeiras que foram formadas no modelo medicalizado intervencionista e que tiveram ao longo da sua prática muitos questionamentos e muitos desajustes nesse campo obstétrico. A partir do momento em que há essa tendência de reformulação do paradigma da assistência ao parto - principalmente no que diz respeito a humanização do nascimento -, essas enfermeiras, que já tinham o fazer diferenciado do campo onde elas estavam inseridas do campo obstétrico hospitalar, se sentem ajustadas nesse campo da casa de pato. Então hoje, eu, Leila, coordenando a casa de parto há 4 anos, entendo que as enfermeiras obstétricas que trabalham na casa de parto têm esse fazer adequado para esse novo paradigma de atenção da humanização, que entende o parto, hoje, como um evento para a mulher, um evento fisiológico, que o parto não é sofrimento, que ele não, necessariamente, precisa acontecer nas unidades hospitalares para dar segurança à mulher e ao bebê; e a gente pode começar a falar de que forma essas enfermeiras atuam na mesa de parto.

Então, eu acho que o ponto principal é a relação pessoal, relação de respeito, uma relação que possibilita autonomia tanto ao profissional quanto à mulher. Essa autonomia é construída diariamente na relação da gestante, da parturiente, da profissional, da enfermeira obstétrica e da família.

E de que forma? Bom, essas enfermeiras trabalham muito a questão da prática educativa lá na casa de parto; elas têm uma disposição para incorporar novas práticas -  porque como eu falei a gente vinha de uma formação muito autoritária - , e com essa mudança, essa disposição de incorporar novas práticas, dentro delas, tecnologias não invasivas de enfermagem, a gente começa a entender como trabalhar a desmedicalização do corpo, em termos do que a gente já trabalhava. Ainda no campo da casa de parto as estratégias para a desmedicalização da assistência, a gente ainda tem um incentivo à participação dos familiares desde o acolhimento, nos grupos educativos que tem como objetivo a desconstrução de um padrão dominante na sociedade, como eu disse, de que todo parto tem sofrimento, que é perigoso, e aí nesse ponto as clientes são inseridas na casa de parto, onde várias atividades que às preparam para essa assistência. Minha experiência como coordenadora me permite afirmar que a principal estratégia para a desmedicalização a assistência à mulher na casa são essas práticas educativas. E a premissa é a evolução do parto como um evento natural, sem intervenções, com a participação ativa da mulher, a elaboração do seu torno de parto, onde esses profissionais discutem e refletem rotineiramente suas práticas e, a partir daí, uma redefinição das relações humanas na assistência, como a revisão do projeto de cuidado.

 

Octavio Muniz da Costa Vargens

 

Aqui cabe uma intervenção para frisar que estamos trabalhando com os conceitos de tecnologia de cuidado, de desmedicalização e de humanização.

A idéia de humanização do parto começou a ganhar força lá trás, ainda na década de 90 e mais tarde com a reunião que aconteceu em Fortaleza em 2000. Quer dizer: o movimento de humanização do parto começou a pensar em alternativas de assistência ao parto, que nasce com essa idéia de resgatar o pato como fenômeno humano, começando também a empregar a expressão “desmedicalização”. Esta caracteriza um neologismo que se apresentou com a intenção de contraposição à expressão “medicalização”. A medicalização já vinha sendo reconhecida e estudada como um processo longo, no curso da história. A expressão “desmedicalização” tem um peso muito forte, que acredito ser ainda maior do que o atribuído à expressão de “humanização”. O emprego do prefixo “des” tem forte impacto por contemplar a idéia de desfazer, o desconstruir de uma lógica de pensar e interpretar os fenômenos e, ao mesmo tempo, ter que colocar uma outra em seu lugar. Assim, a força da expressão “desmedicalização” está no fato de que pressupõe, em sua própria constituição, uma ruptura e um desfazer de uma lógica de raciocínio e a reconstrução de uma outra. E o que estamos pensando como caminho de construção de uma outra lógica de raciocínio é a introdução da idéia de tecnologia de cuidado.

A expressão “tecnologia de cuidado” nos ajuda a entender essa ruptura que a expressão desmedicalização traz. Na verdade estamos contrapondo a idéia de parto no modelo medicalizado entendido como um procedimento técnico, revestido de tecnologias oriundas da industrialização da saúde e da medicina, em oposição à idéia de parto desmedicalizado a qual parte do princípio de que se trata de um fenômeno fisiológico, natural do humano, e que por isso mesmo não carece das intervenções tecnocráticas medicalizadas. Se na lógica medicalizada a expressão “tecnologia” é freqüentemente associada a equipamentos  sofisticados (as tecnologias duras), na lógica desmedicalizada a expressão “tecnologia de cuidado” se despe de equipamentos e se pauta na atitude. Por isso mesmo Torres (2005) a classificou como tecnologia relacional. Para esta autora a tecnologia relacional pressupõe aspectos fundamentais como o acolhimento, o vínculo entre as pessoas que interagem e a relação como sendo sujeito-sujeito. Essa é a primeira característica das tecnologias de cuidado.

A Leila nos contou que  a prática das enfermeiras da casa de parto permite que essas tecnologias sejam melhor conhecidas, uma vez que inclui a incorporação de alternativas de cuidado que têm como princípio norteador o princípio de uma relação humana, uma relação entre sujeitos com saberes diferentes. Mais ainda: têm por hábito respeitar a autonomia da mulher como direito de cidadania.

Do ponto de vista da concepção de tecnologia de cuidado, isto se mostra como mais uma de suas características: a idéia de que ela é, também, uma tecnologia aberta. O fato de ser uma tecnologia aberta é justamente devido à sua característica de incorporar e integrar saberes de diversas disciplinas e saberes populares na construção do cuidado. Isto significa que a enfermeira reconhece, ou precisa reconhecer, o saber da mulher na hora de estabelecer essa relação. As tecnologias de cuidado têm também como característica o respeito à autonomia, o respeito ao saber e à escolha do outro, e, portanto, a sua cidadania.

Estas idéias “desmedicalizadas” de “tecnologia de cuidado”, se contrapõem diametralmente à idéia medicalizada e racional da tecnologia ligada equipamentos cujo uso é determinado exclusivamente pelo profissional e imposto à mulher desconsiderando sua possibilidades de escolha.

 

 

Maysa: Na fala de Leila eu também percebi as práticas educativas como estratégias de desmedicalização, então ela aponta essa possibilidade. Eu acho que as práticas educativas da maneira libertadora como ela vem sendo utilizada pelas enfermeiras da casa de parto, elas vem justamente respeitar o saber que a mulher já traz, mesmo que este saber tenha sido construído numa sociedade altamente medicalizada. Eu vejo que a casa de parto passa por uma tensão quando ela recebe mulheres que foram, desde sua infância, socializadas com uma mentalidade medicalizada e depois ela escolhe parir em algum lugar, e isso não quer dizer que ela tenha escolhido o modelo desmedicalizado, ou humanizado, para parir, mas aí vocês fazem um trabalho utilizando-se de práticas educativas para que ela aceite o cuidado que vocês têm a oferecer sobre uma outra mentalidade já reconfigurada pelo movimento.

Acho que as práticas educativas como estratégia de mediar esses dois modelos que estão em jogo, respeita e ajuda na fisiologia do parto porque evita o choque cultural  que não seria benéfico para a mulher. Só complementando, eu sei que os enfermeiros e as enfermeiras da casa de parto estão muito preocupados com esta questão, pois eles têm falado sobre isso recentemente, o que eu estou dizendo agora é referência de Rafael Ferreira da Costa que é o enfermeiro que acabou defendendo a apresentação de mestrado aqui na própria UERJ. Então, este ajuste é muito importante pontuar no momento.

 

 

 

Leila: Bom, então é isso, como a Jane colocou, muitas das vezes, ou na maioria das vezes, as mulheres que chegam à casa de parto não vêm pela opção ao modelo desmedicalizado. Ela vem porque tem um acesso mais rápido. Mas, ao longo da gravidez e na interlocução, na relação pessoal com a casa, essa mulher vai tendo a possibilidade de se expressar, nos seus desejos e anseios, e essa troca é muito interessante também para o profissional. Porque a gente também, como enfermeiro obstétrico, começa a construir, ou modificar, a própria visão de mundo que a gente tinha em relação ao processo fisiológico do parto. Então eu vejo que hoje a casa é um grande aprendizado não só para o enfermeiro que está lá mas também para os residente de enfermagem que passam né, porque a Secretaria Municipal de Saúde tem um curso a nível de especialização, a residência,   onde a casa de parto faz parte desse, a passagem na casa de parto faz parte da residência delas e eu acho que a casa hoje também serve como a grande propagadora e serve como modelo para esse paradigma diferenciado, entendeu. Então eu acho que a gente hoje ultrapassa a questão só parto e nascimento. Pode-se dizer que, hoje, somos referência para que as pessoas, os cursos e os próprios residentes atuem de forma diferenciada e vejam os resultados muitos positivos. Então, quando Otávio diz que é libertador, e é mesmo, é emancipatório você trabalhar essas questões, tanto em você mesmo, quanto nas mulheres. Então, eu acho que essa é a grande contribuição, hoje, da casa de parto no cenário do Rio de Janeiro. É uma possibilidade – óbvio: dentro da obstetrícia - para a mulher.

 

Jane: Estou entendo que o modelo desmedicalizado adotado pela casa e as práticas que as enfermeiras estão desenvolvendo na casa, as tecnologias de cuidados que as enfermeiras estão desenvolvendo na casa têm colaborado para mudar a mentalidade de toda uma geração de mulheres porque muda a maneira de nascer.

 

Leila: Por exemplo, me veio agora na cabeça, o que a gente faz de diferente, né! Porque a gente é diferente e tal, mas como é que a gente transforma isso no fazer? Então, por exemplo, aquela mulher, aquela família que está acostumada a chegar na unidade hospitalar e ser submetido a outro tipo de tecnologia, uma tecnologia dura, com a própria invasão em seus corpos, na casa de parto a gente trabalha outras tecnologias. Então, por exemplo, vamos dizer a deambulação, o plano de parto - onde ela escolhe como ela gostaria de parir, em que posição, se ela quer aroma, se ela quer musica, se ela quer acompanhante ou não, quem vai cortar esse cordão, a não realização de pisiotomia?? como rotina, a não utilização de ocitoxina? -, então, na verdade, isso seria um choque cultural se essa mulher, essa familia não fosse ambientada ao cenário da casa de parto. A medida que essa mulher, ao longo da gravidez, é inserida na casa, e ela vai tendo apropriação do que ela pode escolher, e o que ela pode fazer, essa mulher, quando sai, também já é uma multiplicadora. Então, por exemplo, hoje nós estamos com 1000 partos então mais de 1000 mulheres estarão contando suas experiências.

 

Heloísa Lessa: Eu queria refletir algumas coisas que acho importantes. O professor Otávio levanta a questão do cuidado e da desmedicalização do processo do parto.. Quando a enfermagem deixa de utilizar a oxcitocina venosa e começa a atuar com as intervenções menos invasivas a enfermagem começa trabalhar com a questão das relações entre cliente e profissional. Sem duvida a enfermagem obstétrica cresceu muito quando compreendeu a importância da tecnologia de cuidado. Ao parar para refletir reconheço o caminho incrível que a enfermagem vem trilhando, no entanto acho que ainda estamos no meio do caminho. Ao visitar em Londres o museu da Florence Nightgale me surpeendi com uma grande inscrição logo na entrada: o hospital é um estágio intermediário, o melhor lugar para cuidar é o domicílio. A Florence figura marcante em nossa história já levantava a questão do ambiente domestico e sua importância para o cuidado. Acredito que na verdade nós não estamos realmente  propondo desmedicalizar, a gente está trocando um pouco, uma tecnologia invasiva dura por uma tecnologia não invasiva.

Quando se fala na importância da educação, do acesso a informação durante o pré natal sabemos da importância que isso tem para que, de fato, a mulher possa ter uma opção de escolha relativa ao local e ao profissional que irá atende-la. Viver um parto normal em centro urbano no Brasil é totalmente contra a cultura então, a questão educativa como já foi colocado é fundamental. Mas eu acho que na hora que a gente entra no processo efetivamente do trabalho de  parto, aí eu acho que gente ainda nos confundimos.  Neste momento o comando da mulher deve ser um comando instintivo.Um comando ligado a sua memória filogenética, que as mulheres partilham com todas as fêmeas mamíferas (Odent, 1989). A enfermeira ainda atua de forma medicalizada e na maioria das vezes comandando o processo. Na pratica o que percebo é que conseguimos partilhar o protagonismo do parto mais não reconhecer e permitir que seja algo totalmente da mãe e do bebê. Podemos pensar que hoje partilhamos o protagonismo.Somos capazes de respeitar a mulher e seus desejos mais temos dificuldades em aceitar que a primeira tecnologia disponível no parto é a que vem da mãe e seu bebê.

Outra coisa que eu gostaria de pontuar, é que acredito ser necessário definitivamente reconhecer o protagonismo do bebê , através da mãe no processo do parto. Chega de dizer que a mulher é a protagonista, e o bebê ? Ele não tem protagonismo nisso?  As posições adotadas pela mãe exprimem o desejo do bebê. Tal e qual posição favorecem a atividade do bebê durante o processo.

 

Jane: É foi muito interessante a colocação da professora Heloísa.  Até confronta com a prática que ela tem a domicílio. É uma crítica muito importante que ela nos faz. Aproveitando esse gancho que você nos deu, no domicílio, que tecnologias não invasivas você utiliza justamente para poder perceber que saberes você utiliza para perceber o bebê e estimular o protagonismo do bebê?

 

Heloísa: Acho que tem alguma coisa na minha prática quem vem mudando, que em algum momento, por exemplo, eu sempre achei muito importante poder oferecer coisas. A compressa perineal no período expulsivo, a massagem, a bolsa de água quente as compressas quentes para alivio da dor.

O que eu percebo na minha pratica diária é que cada vez  eu proponho menos, eu faço menos coisas no trabalho de parto. Qual a minha função? Garantir que o bebê esteja bem. Pensando em tecnologia, o sonho de consumo é ter um sonar doopler maravilhoso para que seja possível escutar o bebê enquanto amãe estiver na água sem prescisar mexer na sua posição. Essa para mim é uma tecnologia fundamental, eu acho que é uma tecnologia de cuidado com o bebê, é uma maneira que a gente tem de saber o que ele está querendo nos dizer.

Além de escutar o bebê e garantir a privacidade no ambiente para a mãe, cada vez mais faço menos. Se vou para a cozinha fazer uma sopa e  a mulher fica um pouco só isso é bom, facilita que ela encontre por si só a melhor posição, a melhor maneira de encarar o processo muitas vezes doloroso da contração. As vezes ter sempre alguém disponivel, tentando minorar nossa dor acaba por nós fragilizar. Acaba por passar a mensagem:não é possível passar sozinha. Esta mensagem é errada e acredito que a atuação muitas vezes do profissional fragiliza a parturiente. Faz com que ela acredite que não pode passar sozinha. Faz com que nós os profissionais acreditemos que podemos realmente fazer algo para abreviar o processo. E nós hospital realmente podemos.A utilização do fórceps, da cesariana sem duvida podem resolver e abreviar o processo. A questão, no entanto, é o preço que é necessário pagar.

Se durante a contração a mulher não tem nenhum tipo de distração ela vai achando o caminho de facilitar a saída do bebê. O corpo vai sinalizando. No entanto é difícil ouvir seu próprio corpo. É difícil escutar a nossa própria linguagem não verbal. Para por exemplo, facilitar para que o períneo continue integro , não se rompa o melhor a fzaer é ficar calada. Estar atenta ao processo sem no entanto colocar a mão no períneo ou no bebê. Permita que a mãe faça a proteção perineal se achar necessário. A melhor proteção perineal é não distrair a mãe e permitir que ela controle completamente o processo.

 

Maísa: Bem o comentário vai ser um pouco longo talvez, mas longo no sentido de começar no pensamento da Leila, quando ela coloca as questões dessa aproximação da casa de parto como o ambiente favorável a se desconstruir ou se resignificar o sentido do risco que o Otávio falou, da reconstrução da idéia de risco, da idéia  do parto, do sofrimento ou do medo que se constrói e a possibilidade de se ter um espaço de autonomia e de liberdade, tanto para a mulher, quanto para a profissional que está tendo essa possibilidade acompanhar esta gestação. Então, eu entendo que o que muda, e eu acho que é fundamental e que isso passa na relação tanto no domicílio quanto na casa de parto, é a possibilidade do encontro de um espaço que favorece o encontro das duas durante a gestação. Então a gente concorda que muda o lugar que ela passa a ser uma tecnologia relacional, ela vai ser construída na relação, mas essa relação onde, como e de que maneira, cada uma trazendo suas próprias bagagens, mas em espaços diferentes e esse espaços seriam os facilitadores. Os facilitadores de se resignificar o risco ou desconstruir a idéia do perigo na gestação. Então o pré-natal deixa de ser um holl de procedimentos, os quais são criados pela hierarquia das ações para que a gente possa ter o controle e conseguir intervir adequadamente no risco. Ou pelo menos identificar quando o risco aparece, então passa a ser uma resignificação do significado da gestação, que, ao se estabelecer o controle da gestação como um holl de controles que pode-se  ter do mais simples ao mais complexo, no que se defende, por exemplo, pelo CLAP – Centro Latino Americano de Perionatologia - que escreveu talvez o primeiro manual de controle ou de acompanhamento de tecnologia à gestação de baixo risco que você vê que no final você precisa de muito pouco, talvez no final de um sonar, de uma fita métrica, de uma balança em termos de tecnologia para acompanhar. O que a agente está aprofundando aqui, e eu acho que vai fazer a distinção e a diferença, é que essa construção do que significa à gestação, ela muda, porque passa a ser uma relação e numa relação pressupõe que para além de serem uma gestante e uma profissional, também são pessoas que vão estabelecer ali uma questão profissional e que vai envolver a questão afetiva e pessoal dentro de determinados limites, então eu acho que tem uma linha de diferenciação que faz diferença para o outro ambiente, que é o hospitalar que é o momento onde as instituições, aqui a gente esta falando de instituições do tempo inteiro, a gente está falando de aplicar as possibilidades de tecnologias e descrevê-las como sendo leve ou não, seja lá do que for, mas a partir de uma relação estabelecida entre os profissionais e de alguma forma eles estarem em uma instituição. E, por outro lado, respeitando a autonomia e a liberdade tanto de quem está buscando este cuidado quanto de quem está oferecendo este cuidado. Acontece uma diferença aí para mim, no hospital, porque a gente esta falando da enfermeira que tem a oportunidade de cuidar  da mulher no ambiente hospitalar, ela já tem uma primeira cisão. Ela, de novo, é um ou uma profissional que vai encontrar com a mulher ali no momento do parto ou próximo a ele, ao final da gestação. Ela não consegue, se ela acompanha não é uma relação que possa ser mais individualizada. Ela foi acompanhada pela instituição em outro lugar, talvez por outra enfermeira. Não importa quem é o profissional. Mas  o espaço que foi criado para se discutir o significado da gestação, que aí entra o que Leila fala e um pouco que Heloísa fala também, que é cada vez mais você incluir os personagens que vão fazer parte desta cena, que é a mulher que está gestante, o bebê que a princípio não fala como nós mas que tem toda uma linguagem pra se expressar e a falta de entendimento e a falta de entendimento dessa linguagem que se traduz minimamente pelo BCF, que é o mínimo de mais concreto que a gente pode ter, e a família como a Leila coloca que é o marido, e a Helô talvez não tenha nem chegado aí. Mas a priori a gente vai trabalhar com relações que sociais e que se estabelecem de uma maneira institucionalizada, ou não. O que eu gostaria de pontuar é que, como me cabe falar das práticas no hospital, eu acho que aí tem uma marca que é muito importante, que é o acompanhamento, a possibilidade do profissional trabalhar as questões de significado da gestação: o que significa gestar? Ele entra direto no parir e perde a chance, como a casa de parto do Rio de Janeiro, que foi pensada, e eu posso falar isso porque na época da formulação da idéia da casa de parto eu estava presente, ela foi pensada como um espaço, diferentemente das outras casas de parto que estavam sendo formuladas, de acompanhar a gestação; entendendo que o acompanhar a gestação daria o tempo e a possibilidade de se redefinir e redimensionar o significado da gestação, do parir e do pós-parto, assim por diante.

 

 

Jane: Eu achei muito interessante e me veio na cabeça as três falas tanto da Leila, da Heloísa quanto da Maísa, e é importante pontuar nesse momento a diferença de clientes. Temos que entender que a enfermeira, professora obstétrica Heloísa trabalha com uma clientela autônoma, ela buscou seus serviços, ela optou por esses serviços. A casa de parto não, a clientela busca a instituição que é a primeira característica que, ela buscou certo, a instituição porque a primeira característica se ela precisa parir é no hospital, ela não está buscando o modelo, é a primeira idéia, então isso significa que a mulher que busca a casa de parto é uma mulher medicalizada na sua socialização primária, secundária, quantas for.

A clientela de Heloisa é uma clientela que já se emancipou deste pensamento medicalizado. A casa de parto usa principalmente as práticas educativas, sem ser invasivo, para tentar vislumbrar para a mulher que ela pode escolher. Então, existe nessa busca da mulher à casa de parto, a possibilidade dela escolher. Diferente da clientela do hospital, que não tem opção nenhuma, esta não tem. Ela vai ser bem atendida. Ao buscar a instituição para parir quando eu quero o acesso eu tenho a estratégia de me modificar, e, aí, as tecnologias não invasivas são importantíssimas, isto é uma tecnologia porque a enfermeira se usa das técnicas educativas, por exemplo, das práticas educativas para mudar a maneira de até de viver da mulher, porque ela muda a maneira de parir e muda a maneira de viver. Se assim ela o quiser, pois ela pode não querer nada daquilo, é uma opção dela. Em relação a estas falas, esta mudança de práticas relativas a clientela e como a tecnologia varia e por isso ela também tem que ser aberta, varia nesses diversos campos, é bom a gente pontuar nessa discussão.

 

Octavio:

Faço aqui mais uma intervenção, retomando colocações da Heloísa e da Leila.

Leila nos falou a respeito do plano de parto e Heloísa contestou. Leila diz assim: “nós estamos desenvolvendo o plano de parto porque nós queremos ouvir o que a mulher quer” e várias vezes ela usa a expressão “o que ela quer”. Heloísa contesta afirmando que a mulher muito provavelmente não vai dizer o que realmente deseja por estar influenciada pelo ambiente.

Nas duas opiniões está presente a idéia do respeito à escolha, do respeito à cidadania, do direito da mulher se manifestar.  Está também a disposição em ouvir.

Precisamos pensar esta questão do estar disponível para ouvir, querer mesmo ouvir, de um lado, e o desejar falar do outro. Para que a mulher esteja segura de falar de seus desejos é preciso “empoderamento”, o que significa dispor de um conjunto de informações que a tornem cada vez mais consciente de si mesma, de suas vontades e seus direitos. Nesta condição muito provavelmente a mulher vai expressar o que realmente sente. E neste ponto o ambiente nem sempre é o mais importante.

Já entendemos e pontuamos que é essencial o que a mulher quer no processo, e não o que nós queremos, não importa se numa Casa de Parto ou no Domicílio como espaços diferentes para atender ao parto ou de cuidar de mulheres em trabalho de parto.  Espaços diferentes com peculiaridades diferentes, mas um dos princípios que norteiam o fazer é o protagonismo da mulher. Para nós (Progianti e Vargens, 2004) a enfermeira não pode ser e nem quer ser o sujeito do processo; os protagonistas desse processo têm que ser a mulher e seu bebê.

O segundo princípio é diz respeito ao cuidado em substituição ao controle. Se nós não entendermos que os eventos fisiológicos da mulher são eventos que precisam algumas vezes de cuidado e nunca de controle, não conseguiremos romper com a medicalização que se pauta no princípio da intervenção e do controle. E estamos justamente fazendo este movimento. Heloísa foi clara nesse ponto: quanto mais se ganha experiência em ajudar a mulher no parto domiciliar, mais se vai oferecendo menos, deixando a mulher se conduzir sozinha. Esse é princípio fundamental. Representa mudança radical na formação do enfermeiro, na sua própria concepção de quem é ele nesse espaço.

O terceiro princípio é o diz respeito ao fato de que o parto como evento fisiológico natural acontece em um corpo que não é apenas biológico. Parto é um evento social, cultural, econômico, político, ecológico, que acontece em um corpo que é um veículo de expressão social, cultural, econômico, político, ecológico da mulher e do bebê. Entendemos o cuidado também como uma relação entre corpos.

Em sua concepção a tecnologia de cuidado tem outra característica muito interessante: ela é uma tecnologia viva, o que significa que ela é uma tecnologia dinâmica, adaptável e renovável em cada encontro e em cada contexto. É, portanto uma tecnologia instituinte por se permitir recriar-se a cada novo momento.

Uma última característica é que tecnologia de cuidado é considerada uma tecnologia de conforto. Quando a gente fala tecnologia de conforto significa que a gente esta tentando descobrir com as mulheres, as melhores maneiras de conciliar as diferentes sensações, as diferentes situações vivenciadas por ela na sua gravidez e no seu parto. Essas situações são únicas. Não tem duas mulheres que vivam as mesmas situações nesse momento. Este é um princípio contrário à idéia da generalização característica da medicalização.

Por fim é preciso ressaltar que, embora a idéia de desmedicalização venha se contrapor radicalmente à medicalização, ela não se pretende excludente. Ao contrário, se ela parte do princípio do direito de escolha, então não pode ser substitutiva e exclusiva em relação às outras maneiras de cuidar. Para nós (Progianti e Vargens 2004) a desmedicalização significa eliminar o raciocínio biologicista como a única alternativa. Diferentes alternativas têm que conviver porque a mulher precisa ter direito de escolher uma ou outras.  Isto fica claro quando Leila diz: “tem mulheres que escolhem não ficar na casa de parto”.

 

Leila: Foi ao contrário, outras mulheres vieram até pela primeira vez saíram da casa e foram para a unidade hospitalar e foram ter seu bebê, e na segunda vez, veio para Casa porque teve uma experiência não positiva e aí veio por opção, e eu acho que, é isso mesmo, é opção, ela tem que ter clareza do que é oferecido e do que ela quer.

 

Jane: E esse é o grande temor da construção de novas casas de parto. A medida em que ela começa a se consolidar, mas se outras casas de parto aumentarem o acesso para as mulheres, se outras casas de parto forem construídas, será um perigo para o modelo medicalizado.

Bem, eu vou passar para a Maísa e depois para a Heloísa mas não sem antes fazer uma provocação para a professora Heloísa. A questão da provocação é a seguinte, nós, quando eu e o Otávio conversamos sobre o que escrevemos sobre os princípios das tecnologias nós tomamos como referência os fisiologistas como Michel Odent. Ele foi nosso ponto de partida para a gente pensar sobre tudo que a gente pensou até agora.

Eu, particularmente, tenho críticas ao pensamento dele porque eu acho que exclui a questão cultural da mulher durante o parto. E eu tenho insistido que todo o cuidado e todas as tecnologias de cuidado do parto são fundamentalmente culturais e a prova ta aqui de toda essa discussão, mudar cultura, mudar a mentalidade, sendo que a cultura vai demorar muitos anos para ser mudada. Eu mudo um pedacinho para que daqui a 500 anos seja mudada a sociedade. Isso Michel Odent já falou, ele admite também que mudar a maneira de nascer é mudar uma sociedade. Então ele admite a cultura e eu creio que em nenhum momento ele exclui a cultura a não ser na hora de parir e de nascer. Eu penso que no hospital a mulher não tem a vivência desse cérebro primitivo, eu penso que todos os esforços que a enfermeira que ali está em condições adversas é para acionar este lado, mas é infrutífero isso. Então, eu acho que as enfermeiras nos hospitais, elas trabalham com o cérebro racional mesmo da mulher, não existe essa possibilidade, estou radicalizando e estou colocando em debate isso, não existe a possibilidade do primitivo ser acionado no hospital porque tudo é adverso. Na casa de parto eu vejo essa possibilidade; no domicílio, só vejo essa possibilidade; no hospital eu não vejo. Então aonde eu quero chegar, a enfermeira cuida ela usa a estratégia ali, e faz práticas para acionar o primitivo, sendo que é a razão que está funcionando, como é que vocês vêem esse paradoxo? Existe uma contradição aí. Se eu não tenho o primitivo no hospital como é que eu ofereço tecnologias não invasivas de cuidados elaborados a partir de um pensamento de neo........??? primitivo da fisiologia do parto, do corpo em contradição ao que é que realmente está acontecendo ali. É uma discussão pra gente começar.

 

Maysa: Esta discussão eu me senti provocada ainda na fala do Otávio quando ele falou da questão do parto como um evento não biológico ou também biológico ou aí também incluiria dentro da biologia um aspecto da ciência também que a gente pode incluir a fisiologia. Porque quando a gente fala do biológico em si, a gente também está incluindo o olhar desse processo como um processo biológico, mas de um desencadear autônomo e próprio também como processo fisiologia também de um desencadear autônomo e próprio. Então eu gostaria de repensar talvez, de mudar o entendimento  desse significado do que seria biológico, partindo desse pensamento que é colocado pelo Michel Odent de acesso ao neo-co...???, como é o funcionamento disso? Isso está aonde? Está no funcionamento da nossa biologia e da nossa fisiologia, que a partir do olhar empírico e da construção e depois do discurso em cima disso que se constitui como uma ciência, e essa ciência tem um nome, que ela vai partir da biologia e da fisiologia do funcionamento de cada parte do corpo, dando lugar às especialidades  para nos partirem em pedaços e para nos descreverem como cada pedaço desse funciona e ele pode adoecer. Enfim, voltando a questão dessa provocação que você faz, eu acho que é interessante pensar nisso e acho que é um desafio. Eu posso dizer que talvez no hospital eu não seria tão radical, mas é muito difícil que o aparecimento ou o contato que você possa ter com o neo-córtex fica mais primitiva, é muito difícil, obviamente, num ambiente que é completamente adverso pela observação, pelo controle, pela quantidade de luzes e obviamente você colocar em prática absolutamente o oposto a toda essa linha de raciocínio. Então eu posso dizer que, na maioria das vezes, eu acredito que é isso mesmo que acontece. Eu acho que no hospital a mulher tem muito pouca oportunidade para acessar porque o primeiro passo que ela faz quando ela vai buscar o hospital, o acesso ao hospital isso vem de uma premissa anterior de dizer: eu preciso de ajuda para parir e aprendi que essa ajuda vou encontrar no hospital. Porque isso foi uma idéia construída ao longo do tempo. A partir desse primeiro passo ela já se destitui do acesso que ela poderia ter a um conhecimento que é o conhecimento próprio, do próprio organismo, que é um conhecimento de acessar se ela de fato conseguir se desvencilhar de todos os estímulos externos e fazer com que seu cérebro primitivo pudesse funcionar. Obviamente tem aí a cultura e essa cultura ocidental que nós criamos. Como é que deve parir? E isso é uma questão que se perguntar empiricamente para as mulheres, elas vão responder: Ah a gente vai parir assim. Elas aprenderam, foi contado de geração a geração. Então, eu acredito que no hospital é um hibridismo, tem um ambiente extremamente híbrido. Híbrido em que sentido? Porque, hoje, nos hospitais nos quais eu tenho a oportunidade de circular, onde a política de investimento na enfermeira tem acontecido de uma forma mais efetiva e ela tem sido um dos agentes da equipe, você pode encontrar ao entrar numa sala de parto e encontrar talvez uma bola, encontrar talvez uma UCI, encontrar um banquinho de parto e encontrar um utensílio próprio, como a própria mesa de parto que é altamente cerceadora, você olha para a mesa, e por mais que ela estranhe aquilo, ou ela aprendeu a usar ou ela vai usar quase que instintivamente; com a cama ela vai deitar, e como eu ponho as pernas, ela vai usar aquele utensílio que foi colocado para ela. Como você pode perceber também, um frasco de óleo que pode ser usado para massagem ou para a proteção perineal, mesmo sendo algo que cause estranhamento ao resto da equipe.

 

Jane: Mas esse óleo é de enfermagem?

 

Maysa: Eu não estou dizendo que é enfermagem, eu estou dizendo que foi a enfermagem que colocou ali dentro, que levou, que fez essa ação como também você pode entrar e sentir um aroma de capim limão dentro de uma sala de pré-parto ou de parto ou PPP Hospitalar, porque foi uma passagem de algum elemento que de alguma forma carrega um frasco de essência e mistura. Então, você começa a perceber nesse ambiente que é um ambiente que tem tecnologia dura e onde participam profissionais que acreditam nas mais variadas possibilidades das quais já falamos aqui, você encontra todas essas questões aparecendo, por isso não dá para fazer uma comparação direta a uma observação que você possa ter oportunidade de perceber o que está sendo violado aí é a intimidade que ela tem e a relação de poder que ela tem na casa dela e que é oferecido a ela na casa de parto. Na casa de parto ela tem essa possibilidade porque a enfermeira, que a priori numa analogia é a responsável pela casa de parto, oferece a ela essa possibiliadade. Diz: aqui você manda tanto quanto eu. O que é diferente dessa relação hierarquizada, que é uma relação no domicilio, porque quem manda na casa dela é ela. E você, de alguma forma, se sente um pouco constrangida. Mas a relação dela vai se inverter. No hospital, o dono do hospital é o profisional e obviamente o hospital  foi construído pela instituição medicina, não pelo médico, mas pela instituição medicina como sendo o lócus da sua prática. E, nós, enfermagem e enfermeiras, estamos partilhando disso estamos dentro do mesmo espaço que, contraditoriamente, cria esse paradoxo, que o paradoxo da mulher é: ela não acessa o seu neo-córtex, o paradoxo da enfermagem, aí, é que ela não consegue acessar as possibilidades que ela poderia ter de, talvez oferecer, de inverter essa posição, e dizer para ela assim: tudo bem, a cama está aqui, mas você pode parir fora da cama se quiser, pode ser no banquinho, no chuveiro ou no banheiro do seu lado. Isso cria, dentro desse espaço, uma série de dificuldades absolutas porque a forma de expressar o pensamento através da oferta de cuidados é completamente diferente. Seriam os dois modelos fazendo uma disputa no mesmo espaço e a voz da mulher faria muita diferença se ela dissesse o que ela quisesse e ali escolher. Mas ela se sente acuada e não vai escolher absolutamente nada, ou vai tentar escolher na medida em que ela sente o mínimo de possibilidade e vai ser a relação dela na vida, no mundo o jeito que ela consegue dizer o que ela quer na vida dela. O que eu queria dizer só para concluir, e passar para a Helô, é que no hospital nós temos uma contradição. A contradição da mulher está colocada, é isso mesmo: como ela vai acessar um processo fisiológico se ela está em um ambiente completamente adverso a isso. E da enfermeira também é um paradoxo, ou um paradoxo parecido: Como ela vai oferecer, dentro de um hospital, um espaço que foi criado para oferecer um determinado tipo de cuidado e tecnologia acreditando-se no risco e na segurança, se ela está entendendo risco e segurança de outra forma e ela vai oferecer aí uma série de procedimentos ou cuidados que são adversos a isso. E, além de adversos, hierarquicamente compreendidos como inferiores. Então é um paradoxo: você dento de um hospital que foi criado pela instituição medicina para a prática médica, você trazer um outro tipo de tecnologia e, além de tudo, em algum momento se colocar que essa tecnologia é melhor que a instituída. Esse é o paradoxo é você dizer quem tem autoridade dentro do hospital não está oferecendo o cuidado adequado, isso é muito complexo e se não tiver  a linguagem adequada, o discurso adequado você vai ser rechaçado como é o que acontece muitas vezes.

 

Heloísa: Eu também concordo com você, no hospital ela não consegue ter acesso a esse lado primitivo. Mas só que eu acho que esse negócio de parir é tão intenso, tão maior .Ë  como se de repente se abre um furinho mínimo e aí a panela de pressão começa a vazar. A grávida em trabalho de parto muitas vezse em condições adversas é capaz de se conectar com essa memória filogenética que o Michel Odent nos traz. O que é a memória filogenética? É a memória instintiva animal que nós, seres humanos, partilhamos com todos os mamíferos. A memória cultural, recente estaria num local mais superficial em uma escala da nossa memória. A memória filogenética está imediatamente a baixo da memória cultural. Ela é mais profunda. Por isso a função do profissional é facilitar a mulher o encontro com esta sua memória instintiva. Nesse sentido eu sou otimista em dizer que, mesmo no hospital, naquelas situações horrorosas a gente dá uma furadinha nesta camada cultural e um vulcão de energia emerge. Por isso o trabalho nos hospitais tem um lado fascinante. As vezes oferecemos tão pouco mais o retorno é imenso.

No domicilio a relação de poder se inverte independente do nosso desejo.As vezes é difícil ir na geladeira e comer alguma coisa.Usar o banheiro e ir adentrando a intimidade da família. Isso facilita para a grávida o comando do processo. As vezes tem parturiente que pergunta: e agora o que eu tenho que fazer? Helô o que eu vou fazer agora? Não é fácil acessar os nossos conhecimentos.Muitas vezes estamos acostumados a obedecer e não a assumir nosso próprio caminho.

Quero voltar a falar da necessidade da possibilidade de escolha para as mulheres. Até a escolha para parir na casa de parto é super elitista. São poucas as pessoas que moram perto e este é o critério de escolha.

De 2000 pra cá, desde o grande Congresso pela Humanização do parto em Fortaleza muitos foram os avanços políticos. São 8 anos, muita coisa foi construída, foi conseguida. O Pacto contra a mortalidade materna, a Lei do Acompanhante foram avanços reais . Neste momento quero pensar em nós enfermeiras obstetras. Em nossa atuação política. O modelo da Casa de Parto de Realengo ao meu ponto de vista é muito bom no entanto não estamos batalhando pela abertura de novas casas de parto. Não estamos organizadamente batalhando por novos. Acho que estamos de certa forma acomodados. Vamos dizer : esse modelo dá certo. Esse modelo desmedicalizado traz frutos.Queremos mais !!

 

Jane: Antes de passar para o Otávio eu gostaria de fazer o fechamento teórico da mesa.  É muito interessante o que foi pontuado aqui, eu acho que a gente não tem resposta mesmo não, a gente tem perguntas a fazer. Eu entendo, Heloísa, que manter a casa de parto é um movimento importante que as enfermeiras estão fazendo no seu cotidiano. Então, quer dizer, não estamos em condições políticas favoráveis no momento para sair com bandeira na mão fazendo militância, nós precisamos manter o que nós temos. Acho que o momento é de parar, parar para pensar, parar para discutir e parar para manter o que nós temos. Porque a situação política não está favorável, os gestores políticos não estão favoráveis. Então, eu acho que ir para a luta agora é kamikase. Então, eu acho que as enfermeiras estão adotando  uma estratégia sábia, porque vem acompanhada com a prudência. Parabéns, Leila, porque é assim mesmo que nós temos que nos conduzir neste momento político. Se tiver que ter algum movimento político da casa de parto, vai sair lá de dentro, pode ter certeza disso. Porque elas vivem o cotidiano disso daí e se sair nós vamos engrossar o assunto da enfermagem, particularmente da enfermagem. Agora, se o movimento de humanização parou isso é uma outra discussão também que nós temos que ter. Por que o movimento de humanização parou? As enfermeiras estão mostrando que têm condição de manter as casas, em todos os aspectos, inclusive produção de conhecimento, sistematização de conhecimento e com um grande potencial de publicação desses conhecimentos. O movimento parou, aí podemos fazer uma outra mesa redonda pra discutir por que o movimento de humanização parou. E é muito interessante, porque quando Heloísa fala do parto domiciliar, até parece que o parto domiciliar não está dentro de uma instituição, mas está. Eu acho que a enfermeira tem que ter um conhecimento muito grande da instituição família, porque ainda sim ela pode ser dona da casa, mas pode não ser dona do corpo dela na instituição família. Então eu acho que um conjunto de saberes das enfermeiras obstétricas relacionados à familia, vai ajudar e muito a implementação de algumas tecnologias relacionais, leves, como queiram classificar, e principalmente, no meu entender, não invasiva.

Então, eu acho que até o parto domiciliar é institucional. Nós não fugimos das instituições em nenhuma instância. Nós mudamos as instituições. Um é instituição médico e o outro é família. Agora o problema é que a mulher não é a dona do corpo, a mulher que não é a dona do corpo aí é que vem o problema do parto na minha concepção.

 

Octavio: Maysa falou em contradições; contradição da mulher e contradição da enfermeira nos diferentes espaços, ao se lançar a idéia de que a expressão tecnologia ainda é muito associada pelos enfermeiros a equipamento, a material, a instrumento e não ao complexo conjunto de conhecimentos que se permite desenvolver, e que se permite incorporar inclusive a questão do equipamento.

Considero muito significativo o fato de que ainda fazemos uma relação de tecnologia com instrumento. Precisamos transcender essa idéia de que o instrumento é a tecnologia. A tecnologia é muito mais do que está embutido na idéia de um instrumento.

Isto significa que ainda não desmedicalizamos nossa forma de pensar tecnologia, nossa maneira de compreender e significar isso para ver que aquilo que está ali é apenas um instrumento, como os outros, para a aplicação do que transcende o instrumento em si.

Bem, aproveito que Jane introduz a idéia de não-invasão para uma retomada de conceitos: precisamos estabelecer as conexões entre as expressões “tecnologia”, “desmedicalização”, “não-invasão”, e “cuidado”. O que temos defendido nada mais é do que a integração destas expressões num conceito central, o de tecnologias não-invasivas de cuidado de enfermagem como caminho para a desmedicalização.

No espaço hospitalar medicalizado os instrumentos e equipamentos têm um forte impacto e conotação invasiva, mesmo quando não tocam  o corpo da mulher. No entanto, nossa concepção de invasão vai muito além do não invadir o corpo biológico. Precisamos entender a não invasão do espaço da mulher, os espaços culturais, mentais,  individuais das concepções que ela dela mesma, do que ela reconhece como direito dela,  quanto ao querer dela e ao dever dela. Nós não podemos invadir esses espaços. E a única maneira de não invadir é obtendo seu consentimento. Assim, a não-invasão tem muito a ver com a não-imposição. Há a possibilidade de se obter o consentimento utilizando a coerção, mesmo que modo educado e aparentemente solícito. É quando “prescrevemos” determinado procedimento e “convencemos” a mulher a aceitá-lo mesmo que contra sua vontade: caracteriza a aceitação passiva, a submissão. A outra forma de se obter consentimento é compartilhar, informar, instruir, dividir esse processo decisório. Neste caso a decisão não é mais do profissional, não é mais “minha”, é nossa. Essa decisão compartilhada é o princípio que nós temos da não invasão.

Bom, meu intuito foi colocar teoricamente essa idéia do equipamento ou do instrumento não como tecnologia, mas como uma forma de viabilizar operacionalmente uma tecnologia; as influencias ambientais que nos fazem pensar diferente sobre isso; e mais: a idéia da não invasão, que era o conceito que faltava incluir nesse debate.

 

 

Considerações Finais:

 

Jane: Acho que, teoricamente, o professor fechou muito bem porque a não–invasão das tecnologias de cuidados de enfermagem tem batido muito na questão do respeito à cultura. Então, na medida em que eu respeito à cultura da mulher que vem ser atendida , eu estou não-invadindo. Por enquanto é isso que nós estamos pensando em relação a isso. E este fato tem contribuído muito para a produção de muitos produtos, muitos bens simbólicos, mudanças de mentalidade. Então são produtos que não são materializados, mas são materiais simbólicos  que a tecnologia invasiva tem produzido e vamos ver se a gente consegue fazer uma mesa sobre essa produção simbólica da tecnologia que já é fruto da tecnologia não invasiva empregada no nosso cotidiano seja, hospitalar, domiciliar seja na casa de parto. E eu gostaria de terminar essa mesa redonda agradecendo muito a colaboração da professora Maysa, da professora Heloísa da Leila, Diretora da casa de Parto, do professor Otávio.

 

Heloísa: Quero fechar dizendo que acredito que em casa ou mesmo no hospital a enfermagem obstetrica hoje esta mais perto de poder proporcionar um ambiente facilitador do processo de parto.

 

Maysa: Eu queria agradecer à Revista essa oportunidade. É sempre muito rico essa troca da gente poder pensar esses diferentes ambientes, até porque o trabalho no domicílio ainda é uma coisa muito solitária. Então a gente poder sentar e pensar juntos essas questões tem um valor absurdo. Então, na verdade, eu queria mesmo agradecer a oportunidade a todos.

 

Quem??: Agradecendo também a oportunidade da troca e de partilhar esses conhecimentos, eu tenho pensado que para a enfermagem obstétrica, que é a nossa primeira fala foi no sentido da mudança, foi uma das primeiras palavras e as primeiras idéias que foram colocadas por todos nós, que é a mudança de modelo, uma mudança de comportamento, de atitude tanto das mulheres fazerem suas opções, quanto dos profissionais e da enfermeira em aderir a um determinado modelo, e a partir dele se constituir numa outra possibilidade de cuidar. Então, eu acho que como a gente inicia com a palavra mudança, e a mudança requer um esforço grande, da forma que tem se debatido nessa direção, e eu acredito que essas questões todas se apresentam para nós como um desafio, tanto no campo da produção do conhecimento, quanto no campo da reelaboração da prática, como da própria resignificação profissional e de vida. Então, por mais que em algum momento, o desafio é desestabilizador, trás dificuldades, trás o conflito, mas traz possibilidades de novas reconstruções, novas portas de saída, novas reconfigurações de campo, e eu acho que é com essa a possibilidade que a gente pode ganhar.

 

Octavio: Faltou abordar a formação profissional, a pesquisa e a produção do conhecimento. Embora a tônica do debate tenha girado em torno dos espaços de prestação ou de aplicação das tecnologias de cuidado, existe um outro espaço que é o da academia, do pensamento,  do desenvolvimento intelectual e conceitual destas idéias. Precisamos muito desenvolver estudos e pesquisas que nos ajudem a consolidar uma sustentação teórica da aplicação das tecnologias de cuidado.

E temos no âmbito da Universidade também a função da formação dos novos enfermeiros. É esse espaço de formação que nos oportuniza a contraposição dos modelos, do ponto de vista intelectual, do ponto de vista teórico. Mas não nos assegura que esses enfermeiros, no campo da vida profissional, vão se desenvolver como a gente sonha. Então, nós temos que ocupar o espaço e talvez dar maior ênfase a esse conteúdo nos currículos, na formação do enfermeiro e desenvolver as estratégias de pesquisa e produção do conhecimento que dêem sustentação teórica à nossa prática de aplicação das tecnologias de cuidado.

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